segunda-feira, 29 de agosto de 2011

AS BADALADAS DO SINO LEMBRAM-ME A DOR DA EXISTÊNCIA E A LOUCURA DA CURA


Pro Humberto irmão, amigo, educador, sambista, gente boa e que gostava da boa vida, partiu sem fazer alarde na fria madrugada  petropolitana no último 30 de maio.
José Saramago tem um belíssimo conto em que fala da aldeia aonde nasceu e viveu parte de sua vida. Lá o cotidiano era marcado pelas badaladas do grande sino que ficava na torre da igreja. Se alguém nascia o sino tocava, se alguém morria o sino tocava. Quando o padre chegava o sino tocava. Quando o juiz chegava o sino tocava. No conto ele faz a relação entre as badaladas do sino e a proclamação da justiça com a chegada do juiz.
Nasci em uma fazenda cafeeira no interior de São Paulo, a fazenda Boa Vista. Lá o cotidiano também era marcado pelas badaladas do sino que era tocado impreterivelmente pela minha avó. A primeira chamada se dava às quatro da manhã. A fazenda começava a viver. O mugido do gado. A arruaça na cocheira. A ordenha. O cheiro de polenta frita. As seis a fazenda se refazia em outro ritmo. Carroças rumo ao eito. Enxadas nas costas. Gado no pasto. Colheita de frutas e verduras. Assim o dia prosseguia. E minha avó administrava a fazenda de dentro da grande cozinha. Ali tudo acontecia. Ali todas as ordens eram dadas. Ali todos se alimentavam, comida para o corpo e para a alma.
Cresci acostumado a ouvir os sinos que badalavam para me alertar sobre a vida e os grandes sinais que ela nos dá. Sinos de catedrais, de capelas, de castelos, de hospitais, de escolas, de igrejas. Assim como cantou Milton Nascimento: “A igreja está chamando os seus fiéis, para louvar o seu Senhor, para cantar ressurreição. Navegar, naveguei no mar do Senhor. Lá eu vi a fé e a paixão, lá eu vi a agonia na barca dos homens”.
Mas descobri com muita luta e sofrimento que mais importante do que ouvir os sinos que soam fora de mim é ouvir os que ecoam dentro de mim. Descobri que a mais fascinante, fantástica, maravilhosa e mística experiência é conseguir ouvir o sino que soa dentro de nós e ouvir as suas badaladas é ouvir o som que existe em nosso coração.
No dia 30 de maio foi meu aniversário. Iniciei o dia com o carinho da esposa, presente, café da manhã e o consolo através da declaração de que eu estava ficando mais sábio. Na metade da manhã fui surpreendido com a notícia do falecimento de um grande amigo: Humberto. Almocei na escola e emocionado recebi o carinho dos alunos e professores pelo meu aniversário. Em seguida rumei para Petrópolis e presidi o funeral do amigo. Mergulhei num oceano de emoção entre professores, alunos e alunas, familiares, todos prestando a sua homenagem ao grande educador e mestre. Voltei e continuei recebendo as homenagens de alunos, professores e amigos. Comemorei meu aniversário sangrando por dentro. Alegre e emocionado, mas querendo chorar o tempo todo a perda do amigo que sem fazer alarde saiu fora do combinado e seu tamborim não mais seria ouvido pelos foliões do Simpatia é Quase Amor.
 Parei para ouvir as badaladas do meu coração. E encontrei a solidariedade no sofrimento de Jó. Ele viveu há muito tempo antes da nossa época. Possuía tudo. Era rico, tinha família e saboreava a vida junto com seus sete filhos e três filhas. Possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas. Dele se afirma: “era o maior homem de todos os do Oriente.” A história de Jó narrada na Bíblia Sagrada mostra um ser humano que recebeu uma das mais violentas provações. Perdeu os filhos, empregados e todos os bens materiais. Como se não bastasse foi acometido de séria enfermidade, ficou com o corpo ferido de tumores malignos, desde a planta do pé até o alto da cabeça. A dor era tanta que ele se raspava com um caco de telha.
Lembrei-me também das palavras de sua Santidade o Dalai Lama: “vocês da cultura ocidental passam metade da vida ganhando dinheiro para viver, depois passam a outra metade gastando o dinheiro com as enfermidades que adquiriram trabalhando. Morrem como se nunca tivessem vivido e vivem como se nunca fossem morrer”.
Como pastor recebo todos os dias um questionamento: por que sofremos? O questionamento torna-se mais forte quando achamos que as pessoas são boas e não devem sofrer. Por que uma criança sofre? Ser pastor me faz perambular por hospitais, cemitérios, casebres e mansões.  Eu não tenho resposta para o sofrimento. Apenas digo que sofrer faz parte da existência humana. É nossa limitação humana sofrer. Mas também afirmo que podemos optar pela maneira como sofremos. Jó após a sua grande tribulação disse: “eu te conhecia só de ouvir, agora os meus olhos te veem. ”
O sofrimento humano são as badaladas do sino da existência que nos fazem lembrar o que somos. E nos fazem sentir uma saudade imensa de um local onde nunca estivemos. Então temos a convicção que naquele lugar encontraremos tudo, inclusive nós mesmos. Os nossos olhos contemplarão aquilo de que um dia ouvimos falar, mas as batidas cadenciadas dos nossos corações nos darão a certeza de que um dia já sentimos esse pulsar tão forte e vamos afirmar como o paciente Jó. Eu agora além de ouvir, estou vendo. Então tudo o que era loucura se tornou cura.
 Luiz Longuini Neto
Maio/agosto2011.

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